A crise Mandetta e a continuidade do serviço público

A crise do COVID-19, dentre tantos e terríveis males, tem exigido reflexão sobre o papel do estado e do seu funcionamento. Diminui a visão do estado como dreno de recursos espontaneamente construídos na sociedade, e sobressaí o estado social, não pela bondade do soberano, mas pela sua capacidade em capital humano e financeiro de diluir os custos da crise no tempo e no espaço, sendo um agente promotor de direitos e de sobrevivência, quando tudo o mais parece falhar.

Este fenômeno, obviamente, não ocorre sem tensões.

O governo Bolsonaro, eleito sob a égide anterior do estado-despesa, tem todo seu plano de trabalho baseado na redução dos gastos – primeiro previdenciários, em seguida com folha de pagamentos – e de direitos, sejam trabalhistas, sociais, de indígenas, ambientais, culturais  e uma revisão do papel da educação para algo despolitizado e tecnicista.

Agora, porém, o Brasil precisa de investimentos estatais e nacionais. Em ciência, tecnologia e educação, como demonstram as contribuições das universidades federais. De uma rede de assistência social firme e bem equipada. Precisa proteger o emprego e os segmentos mais frágeis da sociedade, como pessoas em situação de rua, indígenas e quilombolas. A infraestrutura nacional também não sobreviverá se depender da lucratividade imediata da política de concessões que não resistem às incertezas da crise. E tudo isso precisa de gente, de pessoal técnico qualificado, de carreira, bem selecionado e motivado, com visão de futuro e de país.

A crise Mandetta, como denomino a tensão entre o Presidente da República e o ministro da Saúde, é evidência da importância do serviço público contínuo, que apenas subsiste com o direito à estabilidade do servidor concursado e devidamente remunerado.

Por motivos que aqui não cabe sondar, o Presidente resistiu: i) a gravidade do vírus; ii) seu impacto no Brasil; iii) às medidas cientificamente indicadas; iv) acreditou em curas e vacinas não testadas; v) retardou a execução da assistência social aos prejudicados pelas medidas de distanciamento social. Contraposto pelo Ministro, este foi demitido. Cai o Ministro, mas não cairá o ministério, não podem cair as políticas públicas de saúde.

Não cairá o Sistema Único de Saúde, constitucionalizado, descentralizado, com recursos garantidos na carta magna e quadros técnicos em todo o Brasil. Não cairá a autonomia dos Estados e das Universidades. Não cairão os gestores, pesquisadores e médicos concursados. Cai o Ministro, mas os servidores de carreira mantêm a Saúde, a despeito do Presidente.

Assim, quem quer que seja o novo Ministro, estará limitado legalmente pelo princípio da motivação, da discricionariedade técnica. Suas decisões deverão ter amparo nas notas técnicas de pessoal efetivo, concursado, que tem na estabilidade a segurança contra ordens ilegais. Estes servidores sabem que, hoje, seus salários vêm dos impostos do povo, não da vontade do chefe de momento – pelo princípio da irredutibilidade dos vencimentos.

Caso divirja dos técnicos, o Ministro poderá ser corrigido pelo Poder Judiciário – também formado por pessoal concursado e estranho, salvo nas cortes, aos achaques da política.

Sabemos que há influências políticas, o excesso de cargos comissionados permite o ingresso de pessoal sem concurso em grandes quantidades e a distribuição arbitrária de chefias. E o aperfeiçoamento do serviço público passa pela redução desta influência política, não pela fragilização dos servidores técnicos.

Este momento de crise demonstra que as salvaguardas do serviço público, como a estabilidade – que não impede a demissão de corruptos e incompetentes – e a proteção dos salários, são defesas da sociedade. Sem elas o poder político ficaria ainda mais livre para utilizar os recursos públicos, dinheiro do pagador de impostos, para ganhos político-partidários imediatos, para conchavos e não para assegurar direitos e dignidade ao povo brasileiro.

Defenda a sua saúde dos interesses políticos, defenda o serviço público de carreira.

Fabio Monteiro Lima é advogado, especialista em direito público e consultor de carreiras do serviço público.